segunda-feira, 16 de abril de 2012

Uma esplanada sobre o mar de Vergílio Ferreira

Vergílio Ferreira
- Não há nada mais igual do que o mar ou o lume ou uma flor. Ou um pássaro. E a gente não se cansa de os ver ou ouvir. Só é preciso que se esteja disposto para achar diferença nessa igualdade. posso olhar o mar e não reparar nele, porque já o vi. Mas posso estar a olhar para ele e não me cansar da sua monotonia.
O rapaz tinha o olhar absorto na extensão das águas e permaneceu calado algum tempo. As águas brilhavam com o reflexo do sol na agitação breve das ondas. A rapariga calava-se também, fitando o rapaz, porque percebia que ele não acabara de falar. Mas o rapaz calou-se como se não tivesse mais nada a dizer
- Mas que é que querias dizer-me?
- Mesmo as coisas mais banais são diferentes se alguma coisa importante se passou em nós.
- Se alguma coisa importante se passou em nós, não reparamos nas coisas - disse a rapariga, acendendo um cigarro.
- Que coisa importante? - perguntou a rapariga
Mas ele não respondeu e ela perguntou outra vez.
 - Que coisa importante?
- Não sei. Uma coisa importante. Se te morresse o pai e a mãe e ficasses subitamente sozinha, o mundo transfigurava-se. Se tivesses tentado o suicídio e te salvassem, mesmo as pedras e os cães começavam a ser diferentes porque os olhavas com outros olhos.
E de novo se calou. Mas agora também a rapariga se calava na indistinta ameaça de não sei o quê. O sol rodara um pouco, apanhava agora a cabeça do rapaz, incendiando-lhe o cabelo tombado para a testa. Levantou-se, tentou ela fazer girar o guarda-sol azul no pé de ferro articulado, seguro com um gancho recurvo e uma pequena corrente. Sentou-se de novo mas verificou que ficava ela agora com uma mancha que lhe apanhava um ombro e o braço e uma pequena zona da face. Bebeu um pouco de refresco, olhou distraidamente a linha longínqua do limite do mar. Havia no rapaz uma notícia a dar, mas a rapariga não sabia como fazer a pergunta certa para estar certa com a resposta que queria ouvir. E de súbito disse:
- Pediste-me para estar aqui às quatro horas.Telefonaste duas vezes. Vieste à praia para isto. Porque é que afinal vieste.
-  Mas tenho estado a explicar-te porque vim.
- Tens estado a explicar porque vieste. Mas falta o mais importante. Falta dizeres que está tudo acabado. falta dizer que essa tal tua amiga conseguiu o que queria. Falta dizer que nunca me achaste tão bela como hoje, mas que já me não  podes amar. Falta dizer isso, mas tens de preparar o terreno, porque a coragem nunca foi o teu forte e julgas que não é o meu.
 Falava devagar mas com uma grande intensidade interior e, ficou assim ruborizada, os olhos brilhantes de violência. O rapaz ouviu-a e não respondeu. pensou primeiro concordar com a rapariga e dizer-lhe talvez que já não a amava. Evitava assim dizer-lhe a verdade. Quando ela depois a soubesse, talvez já não sofresse, talvez o esquecesse mais depressa. Mas sofreria ele por aceitar uma mentira que ia contra o que sentia. Julgava ser mais fácil dizer tudo e via agora que não.
 - Nada disso é verdade - disse por fim.
O mar brilhava cada vez mais. As placas incandescentes tremeluziam nas águas e faziam semicerrar os olhos ao rapaz. Vergou-se para a mesa e bebeu um gole de refresco."

in Uma esplanada sobre o mar de Vergílio Ferreira (excerto)


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