"Como eu lamento que sem mim os dias passem, as flores desabrochem e a Primavera venha; Invernos e estios e as Primaveras hão-de passar, e eu nada mais sou senão terra e pó.” (‘Abdul-Rahman Jami).
Neva em Kabul. O pó assentou. Por via disso, esta madrugada já se respira melhor. E cheira a terra húmida, a terra porejada do deserto, e a flores cor-de-rosa e amarelas, repousadas. Assim que pela aurora os revérberos do sol despontaram no horizonte, logo se ouviu ao perto, neste bastião cercado de muralhas, a desfraldar e a adensar o ar chamando as pessoas para o centro desta maravilha, a candente e harmoniosa musicalidade do “mu’addin”, no topo das soberbas mesquitas que se erguem aos céus, severamente elegantes, para deleite dos olhos da alma retemperada. “Ashhadu an la ilaha ill Allah!” (“Não há outra divindade senão Deus!”), ressoa nos minaretes. Paraísos do crescente verde.
Hoje é sexta-feira, “al-jumu’a”, dia santo para o Islão. É dia de orações. E dia de mercado ao ar livre, no meio do campo, à beira da estrada, entre camiões e camionetas a abarrotar de gentes, petizes travessos a correrem sem direcção certa, nos trilhos de terra batida para os carros, meninos que não foram dados pelas mães, alguns descalços nas pedras e no gelo, anciãos de longas barbas brancas com bebés ao colo, buganvílias, ceitis, antiguidades dos lados de lá das fronteiras, despojos de outras guerras, aromas adocicados, rolos de tapetes e sacas abertas de especiarias, lojistas indolentemente recostados a pilhas de almofadas bordadas, que acenam, regateiam preços, levantam o canto das mantas exibindo o intrincado trabalho manual e convidam a entrar nos seus bazares. Dois homens, de característica uzbeque, constroem uma casa, tijolo sobre tijolo. Há mulheres a lavar roupa nos pátios. Frenesim, constantes idas e vindas, transportes e trocas, carga, lã, metais, açafrão, tâmaras, panos, pregões, ruídos, exotismo, cestos de laranjas, incenso, ar húmido, eflúvios a cardamomo, sedas, adargas, cobres, frutas, bijutarias e oiro, lírios, açucenas e perfumes inebriantes e particulares a jasmim e a menta, cabras, ovelhas, cavalos, vacas escanzeladas, galinhas e patos, afundados na lama onde vão ter as águas das lavagens que correm, em regos, no meio da rua.
As crianças pululam em nosso redor. E fazem muitas perguntas. Saudamo-las com um sorriso e um “Ba’dan mêbinêm, insha’Allah” (“Até já, assim queira Deus”). Abdullah, moreno, magro, cabelo curto e espetado, sorriso jovial, olhos meio em bico, chama-nos para a sua “shop”, onde vende peças de artesanato e oferece recordações a quem por lá parar e, com ele, partilhar um copo de chá verde. “Come on my friend, man dar dôkân kâr. Good price for you”.
Tropeçando um bocadinho nas palavras, diz-nos que um dia o Afeganistão atingirá de novo a sua beleza. Enleio-me nesse entusiasmo e reflicto na poesia factível desta terra. Deste palmar perdido. É preciso pisar o ancestral solo desta nação, afagar as pedras e contemplar essas muralhas de terracota, espessas como o tempo, arcadas de terra cozida, voltadas a sul, muros encimados por ameias em dentes de serra, feitos de areia granulada, estrume, barro, escorpiões mortos e do suor de gerações, eternos murmúrios do passado, testemunhos de tamanhos sofrimentos e tantos actos de abnegação e heroísmo, para nos sentirmos pequenos ao recordar a grandeza dos que a conquistaram, construíram e defenderam. Guerreiros, místicos e eruditos, de quem recrio e invento mentalmente os seus passos de descoberta, percorrendo o país de lado a lado, em latitude e longitude.
Não há dúvida que é um país estranho e complexo este, que desperta a atenção, emociona e enamora a curiosidade, e onde felizmente se pode, ainda hoje, ver um mundo de ontem pois que raros domínios possuirão uma tão forte originalidade, genuinidade, erudição e tanta riqueza de raças, multiplicidade e contrastes na história, nos ecos, nos costumes, nas fácies, nos trajes, nas glórias, nas lágrimas vertidas, na paisagem e na textura. Aqui, até as árvores falam uma língua diferente.
Abdullah tem 24 anos e é de Bamiyan, a cerca de 150 quilómetros a oeste de Kabul, a capital afegã. A cidade de Bamiyan, no centro do país, tornou-se lamentavelmente mais do que nunca conhecida depois que, em Março de 2001, a milícia “taliban” decidiu destruir as estátuas dos maiores budas de pé existentes no mundo, datadas do ano 500, esculpidas na rocha vermelha de uma escarpa abrupta, uma com aproximadamente 55 metros e a outra com 38 metros de altura, por alegadamente representarem um deus Hindu, “um deus dos infiéis”, conforme redigido na “fatwa”ou “decreto religioso”, então aprovado pelos líderes religiosos e pela “suprema corte taliban”. Nos traços desses budas, o rigor da Grécia coexistia com a espiritualidade hindu, expressando atitudes diferentes perante a vida numa mescla cativante do encontro de culturas, de mundividências, de cosmogonias tão distantes como a greco-bactriana, a kuchana, a budista, a dos guptas da Índia e a dos sassânidas persas. De comum, o Deus-Sol que fundia três simbolismos: o do grego Helios, o do persa Mitra, o do indiano Surya. A iconografia perturbava e comovia o forasteiro.
Apesar de terem sido invocados motivos de ordem religiosa, a verdade é que, quando o primeiro exército árabe atravessou a cordilheira do Hindu Kush rumo à Índia e avançou para Oriente ao encontro dos chineses (a quem derrotou na batalha de Talas) ignorou a existência das estátuas de Bamiyan, obras primas do período tardio da chamada “Arte de Gandhara”, uma escola que nasceu no actual Afeganistão e no norte da Índia (hoje Paquistão) que atingiu o apogeu nos dois primeiros séculos da nossa era, quando essas regiões estavam integradas no Império Kuchano, e que desempenhou na época o papel de intermediário no comércio entre a Roma dos Antoninos e a China dos Han. Foi idêntica a atitude das sucessivas dinastias muçulmanas que dominaram a região, desde os samanidas aos turcos gahznividas, que sempre reputaram os budas gandharianos, uma maravilhosa adaptação da arte grega com a uma concepção religiosa do mundo antagónica ao paganismo dionisíaco dos helenos. E até o mongol Gengis Khan, responsável pelos maiores genocídios da Idade Média, transcorridos cinco séculos, ordenou que todos os seres vivos (incluindo cães e gatos) fossem destruídos no vale apertado entre píncaros de Bamiyan. Mas os budas foram poupados...
(...) Lusco-fusco. Recortam-se no céu as estrelas e a meia lua. Quarto crescente. Sombras, aninhadas aqui e acolá, revelam meninas reinadias, brincando inocentemente. Ensaiam um boneco de neve, o “adamak-e barfi”, celebrando a vida com alegria e canções trazidas no vento. Luas ou anjos, não sei o que seriam realmente as coisas que via. E, ali mesmo, pergunto-me, até quando as intolerâncias serôdias, as políticas bizantinas e as asininas guerras persistirão em inquinar as cores celestes da paz e aluir prematuramente a sublime beatitude divina da criação.
Kabul está branca, hoje. De esperança.
O blogueiro de Kabul de António Rodrigues
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