Estamos a dois passos do Natal. O céu toldou-se, foi-se embora o sol que gozámos quase durante duas semanas, mas em compensação o frio abateu. Veio a chuva, e os dias, mais curtos, estão fuscos. No lento escurecer destas tardes grisalhas, vejo os transeuntes apressados que voltam das docas ou do emprego, a caminho das sopas, sombras anónimas curvadas debaixo do vento e do aguaceiro. Uma paz irreal parece escorrer do céu, misto de azul pálido e rosa diluído, com a chuva. O seminário cresce, avulta no crepúsculo; e de súbito os vitrais da igreja acendem-se lá em baixo, luz frouxa, de caleidoscópio, com predomínios de ouro.Dão quase a ilusão ... No silêncio atapetado de verdura e humidade, por entre o susurro distante e ameaçador da metrópole, chega até mim a ressonância grave dos cânticos e a voz abafada do órgão. Lá adiante, na Nona Avenida, acendem-se as insígnias a gás néon das tabernas e bares, que enchem a névoa dum fulgor de lareiras acesas. E só agora eu compreendo a atracção de todos estes ópios sobre a gente que passa nas ruas molhadas e hostis, sob um peso dum dia de fadigas e na perspectiva talvez dum serão solitári e angustioso. Os homens procuram os seus narcóticos.
Altas horas da noite, findo o meu trabalho, ergo-me da mesa e vou até à janela olhar a grande massa escura do seminário: telhados, torres, coruchéus, recortam-se da névoa ensanguentada de clarões. A paz de Deus no tumulto incessante. Vejo uma luz acender-se numa distante mansarda Tudor: alguém que estuda ou reza. Os grandes olmeiros da cerca recortam-se até aos raminhos mais altos, todos nus, com a precisão duma miniatura japonesa na laca do céu de incêndio. Os troncos enormes escorrem água, reluzem sinistramente à passagem dos faróis dum auto. E a cidade exala de repente uma solidão que me sufoca. Sinto o desejo de fugir antes que isto se apodere de mim... Só poderia libertar-me se escrevesse um poema.
José Rodrigues Miguéis, O Natal do Dr. Crosby (Do Diário dum expatriado) em LÈAH e outras histórias, edicão do Círculo de Leitores, s/d.
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