sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O tempo do coração


O tempo mede-se com batidas. Pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas de um coração. 
Os gregos, mais sensíveis do que nós, tinham duas palavras diferentes para indicar esses dois tempos. Ao tempo que se mede com as batidas do relógio - embora eles não tivessem relógios como os nossos - ele davam o nome de chronos. Daí a palavra cronómetro. O pêndulo do relógio oscila numa absoluta indiferença à vida. Com as suas batidas, vai dividindo o tempo em pedaços iguais: horas, minutos, segundos. A cada quarto de hora soa o mesmo carrilhão, indiferente à vida e à morte, ao riso e ao choro. 
Agora, os cronómetros partem o tempo em fatias ainda menores, que o corpo é incapaz de perceber. Centésimos de segundo: que posso sentir num centésimo de segundo? Que posso viver num centésimo de segundo? Diz Ricardo Reis, no seu poema "Mestre, são plácidas ... não há tristezas nem alegrias na nossa vida ..." É estranho que ele diga isso. Mas diz certo: o tempo do relógio é indiferente às tristezas e alegrias. 
Há, entretanto, o tempo que se mede com as batidas do coração. Ao coração falta a precisão dos cronómetros. As suas batidas dançam ao ritmo da vida - e da morte. Por vezes tranquilo, de repente agita-se, tocado pelo medo ou pelo amor. Dá saltos. Tropeça. Trina. Retorna à rotina. A esse tempo de vida os gregos davam o nome de kairós - para o qual não temos correspondente. 
A nossa civilização tem palavras para dizer o tempo dos relógios: a ciência; mas perdeu as palavras para dizer o tempo do coração. 
de Rubem Alves,  As cores do crepúsculo, Editora ASA, 2004

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