segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Verbário | José Eduardo Agualusa

"Em criança, após a morte do meu pai, escrevi durante muitos meses um diário invisível, seguindo um método que ele me ensinara, brincando aos espiões, e que consistia em colocar sumo de limão numa caneta de tinta permanente. Perdi o caderno. Reencontrei o caderno já adolescente, pouco antes de partir para Roma em busca da santidade. Eu sabia que aquelas páginas estavam cheias de memórias, entretanto esquecidas, mas folheava-as e não via nada. Um dia, deixei o caderno abandonado ao sol. Quando o reabri, surpreendi-me ao verificar que o calor revelara as palavras. O tempo, que tem ainda mais força do que o sol, voltou a apagá-las. Guardei comigo, ao longo de tantos anos, esse diário invisível. Numa página ou noutra ainda se adivinha, como no livro de sonetos de Camões, aquele que foi pertença do patriota timorense, a vaga respiração de uma ou outra palavra. Tenho-o aqui nas mãos, o meu diário invisível. Folheio-o, com o mesmo tipo de arcaica e obscura fé com que uma pitonisa consulta as cartas ou os búzios.
Hoje saiu-me a página do
Medo
E depois:
Sonho
Abismo
Solidão
Parece-me uma conjunção curiosa, embora não muito favorável. À quinta consulta, encontrei uma frase completa:
«Amanhã nunca mais ninguém me acordará.»

 Como se chama ao lugar onde dormem as palavras por estrear?
 Um «Verbário»?
 É para lá que eu vou."

                                                              Voo Lisboa-Natal, 28 de Abril de 2010

Final de Milagrário Pessoal de José Eduardo Agualusa, D. Quixote, 2ª edição, 2010

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